A Referenciação
Por: Breno W.
19 de Abril de 2019

A Referenciação

O movimento em círculos concêntricos

Redação Como fazer uma boa redação Geral Assuntos que mais caíram no ENEM Aulas Particulares

Referência, Referenciação e Objeto-do-Discurso: “o movimento em círculos concêntricos”

 

O complexo problema das relações entre as palavras e as coisas têm ocupado filósofos e linguistas há milênios. De fato, dedicamos anos de nossas vidas desenvolvendo nossa competência comunicativa, ou seja, nossa capacidade de trocarmos representações sociais através do discurso adequadamente.

Mesmo assim, de tempos em tempos, sempre temos a impressão de termos dito X, mas, na verdade, a nossa intenção era dizer Y. Ou, uma situação pior, temos o desejo de dizer algo e não conseguimos fazê-lo por motivos não linguísticos, ou seja, sócio-cognitivos.  

Ao lançarmos nossa atenção no campo bibliográfico do Discurso, muitos serão os motivos para essas situações. Poucos motivos, porém, são localizados no nível perceptivo e, ao mesmo tempo, aperceptivo. As teorias do discurso dessas motivações focam-se ora na dimensão social, ora na dimensão psicológica, dicotomicamente, como se as relações entre estas duas dimensões ocorressem de tal forma que só o social fosse relevante ou só o textual/discursivo é relevante.

A novidade do conceito de sócio-cognição, produzido no campo da Psicologia Social após um longo percurso iniciado ainda no século XIX, foi o lançamento de um terceiro elemento no problema da relação entre discurso e sociedade. Esta interface é o ponto de encontro entre a realidade social e os seus conflitos, de um lado, e o subjetividade e as suas dissonâncias e consonâncias, do outro.

O pressuposto desta teoria é que, dada uma realidade social e um conflito, a presença de forças contrárias na percepção do sujeito, o sujeito faz uma escolha. Feita tal escolha, o conflito desaparece e, no seu lugar, instalar-se a dissonância e a consonância cognitivas.

De um ponto de vista psicológico, o conflito ocorre no momento anterior a escolha feita à luz de uma realidade. Uma vez feita a escolha por parte do sujeito, o que ocorrerá cognitivamente é a dissonância e a consonância. Ambas estão sempre presentes após na cognição e a tendência natural segundo tal teoria é a diminuição da dissonância e o aumento da consonância com as suas escolhas.

Neste contexto, quanto mais confiante o sujeito estiver da sua escolha, maior será a magnitude da consonância e menor a dissonância. Entretanto, se, por algum motivo, externo ou interno, a magnitude da dissonância aumentar através da perca da confiança na escolha feita, porque à luz da realidade social a escolha mostrou-se errada, a dissonância aumentará em magnitude motivando assim o indivíduo a alterar sua cognição, ou seja, sua representação social da realidade.

a forma que quando temos fome buscamos alimento, temos sede buscamos água, quando a magnitude da dissonância em nossa mente torna-se maior que a consonância, quandos nos tornamos discordes conosco mesmos, a cognição naturalmente buscará uma forma de diminuir a magnitude da dissonância. [1]

 Qual é a novidade do conceito de sócio-cognição? O fato dela reconhecer de um lado a realidade social e, do outro, a existência de uma dissonância e uma consonância na base da cognição de tal forma que o sujeito não está aprisionado a um eterno conflito com a sua realidade social; mas, sim, a busca por uma equilibração psicológica através da diminuição da magnitude do desequilíbrio Uma vez que a Psicologia social passou a constituindo uma interface entre o individual e o social. Esta  se localiza a questão do sujeito do discurso.

A comunicação é um processo intersubjetivo altamente complexo que aprendemos à medida que expandimos nossos contatos, adentramos ou somos colocados em novos círculos sociais. Aprender a se comunicar é o mesmo que constatar que aquele sujeito que para uns é apenas “um amor”, para outros é “o amor”. O corpo cuja imagem cujo valor é o da “liberdade” ou “salvação” para uns é, para outros, a imagem do “claustro”.  

Nesse sentido, a comunicação utiliza-se das linguagens como um instrumento, ora em um movimento concêntrico, ora em um movimento excêntrico. A capacidade de controlar este movimento conscientemente ocorre de forma paralela com a constituição da nossa própria identidade no seio da sociedade. Entretanto, as linguagens têm uma dimensão própria que, no que se refere à língua, são o objeto de complexas teorias científicas como a Linguística. O ponto de encontro entre todos essas dimensões é o conceito de valor.

No contexto de Van Dijk, a interface psicossocial é intermediada por um terceiro elemento: a cognição.  Nesse contexto, ela é a responsável pelo processamento e produção do Discurso/Texto, ou seja, pela ativação, atualização e desativação dos nossos valores.  O centro do problema da valoração é que esta não pode ser reduzida a uma imanência social ou textual/discursiva. Tal redução descaracteriza o ponto central da questão dos nossos valores: eles são adquiridos a partir da vida em sociedade, mas, também, são condicionados pela nossa experiência individual, pelos nossos corpos. Assim, para a perspectiva Sociocognitiva do discurso, o corpo é o “fiador” do sentido. 

O grau de vacuidade da representação do corpo pelo discurso é objeto de uma rica tradição filosófica e, posteriormente, gramatical. Passemos, então, a um breve explanação da tradição filosófica a respeito da questão da linguagem para, em seguida, adentramos no escopo estritamente gramatical à luz do trabalho de (Neves, 1987[1983]).

O discurso e as suas metáforas geométricas

 

Em culturas espalhadas por todos os continentes e períodos históricos encontramos a questão do grau de vacuidade da palavra em relação a um discurso. Na tradição cultural greco-romana, tal questão recebeu o rótulo de lógos. Sofistas e Filósofos trataram deste assunto através da oposição doxa x epistéme, ou seja, através da diferenciação de dois campos de instancia do lógos. De um lado, o diálogo e as sua multiplicidade de verdades, do outro a dialética e a Verdade. O ponto de encontro dessas duas correntes é a materialidade linguística do discurso. [2]

Do ponto de vista dos sofistas, o lógos era estudado a partir da sua função pragmática, ou seja, como meio de transformação de um argumento fraco em um argumento forte. A reflexão sofística sobre a linguagem não era um discurso sobre o Ser, ou seja, ela não buscava a Verdade através do discurso. A disciplina Retórica refletia sobre os meios de persuasão de tal forma que, dado um contexto, os argumentos eram selecionados e lançados pelo orador através de forma mais ou menos consciente dos seus possíveis efeitos. Nessa perspectiva, a premissa era a de que todo e qualquer discurso era um diálogo. Sendo assim, a verdade do discurso persuasivo estava apenas no plano da sua materialidade linguística. Mesmo tendo dado ao plano do discurso estatuto as razões necessária e suficiente de verificação da verdade, os sofistas não enxergaram a função sígnica ou representacional da palavra.

Eles voltaram as suas preocupações pedagógicas e pragmáticas para a euépeia, ou seja, para as formas de embelezamento da expressão através do estudo de tropos, metáforas, alegorias, hipálages, antíteses (contrastes de sentido); para o estudo das correspondências entre a estrutura de membros da frase, a parísosis; as correspondências entre os sons, paramóieses. Preocupavam-se com o uso correto dos nomes, do ritmo, da harmonia, das letras. Alguns sofistas como Górgias e Pródico esboçaram teorias a respeito do uso correto dos nomes e dos tipos de frases (perguntas, declarações, etc), mas o fato deles não distinguirem o nome da coisa, o lógos do ónoma, impedia-os de observar a articulação interna do lógos, as classes de palavras e as suas relações.

Um ponto comum às práticas sofistas na exegese e na retórica era a onipresença do lógos. É esta onipresença que será utilizado como contra-argumento pelo discurso filosófico: se o discurso encerra toda a realidade, se a verdade está apenas no plano do discurso, logo a coisa ou realidade precede o discurso. Temos aqui o processo circular do discurso.

Este é o ponto que Platão deteve-se cujo resultado final foi o desdobramento do lógos em uma oposição: naturalismo x convencionalismo.  Platão foi o primeiro a buscar as partes do lógos à luz da verdade. Para ele, o sentido verdadeiro da linguagem não a conduziria à si mesma, porque a palavra em função da verdade dá as condições da dialética. E é a dialética o objeto do discurso platônico.

 

 Esta  e do processo de construção do sentido. esta questão posta e uma prova disso é a presença da arte retórica. Abstratamente, as respostas dadas a essa questão a partir do paradigma greco-romano podem ser identificadas na literatura através de figuras geométricas: o círculo, o triângulo, o quadrado, o hexágono, etc. as quais, por sua vez, são metáforas que apontam para diferentes metafísicas.

Embora a metafísica não seja realmente levada a sério por aqueles que se debruçam sobre o problema da linguagem, essas figuras servem apenas como âncoras culturais para identificarmos as diferentes visões a respeito da questão. Assim, tendo-se delimitado o contexto, podemos nos perguntar em que momento da história a linguagem deixou de ser parte do mito, entrou no debate filosófico e, por fim, desmembrou-se deste, trazendo consigo categorias filosóficas e, ao mesmo tempo, estabelecendo-se em um campo a parte do saber. Uma resposta a essa pergunta é a dada por (Neves, 1987[1983]).

Segundo esta autora, no mundo da pólis gregahavia duas tradições relacionadas ao uso da linguagem. A tradição poética pela qual as musas falavam através dos homens e a tradição retórica pela qual os homens falavam de si mesmos.  Há o dizer e o fazer. No contexto homérico, elessão coisas diferentes. Assim, havia quem brilhasse pelas suas ações e quem brilhasse pelas suas palavras. O que agia e falava com brilho havia despertado, os que não tinham brilho em suas palavras estavam adormecidos.  Posteriormente, o dizer e o fazer reúnem-se. Os adormecidos apenas agem, os acordados dizem-e-fazem. A palavra e a obra por si só falariam são fruto do sábio, daquele que fala com sentido.

Com a emergência da filosofia, a distinção entre o dizer e fazer desaparece. Há uma sabedoria toda interior, um pensamento puro, e o produto deste pensamento é apenas a obra. O dizer é, nesta última fase, nada mais que um falar; uma função cujo produto é a obra. O discurso filosófico, cuja finalidade era o de articular o todo das coisas, o princípio das coisas, o seu governo e a sua natureza, distingue-se do mito através do apagamento da oposição entre dizer e fazer.  Entretanto, a questão da linguagem não pode ser completamente abandonada.

Para um Tales de Mileto, a água era o princípio, arché, de todas as coisas e do seu governo. Anaximandro concluiu que o princípio de todas as coisas era um elemento ilimitado, o ápeiron, e não um dos elementos encontrados na phýsis, como a água ou o fogo. Uma terceira hipótese, mais interessante para os estudiosos da linguagem, foi a de Heráclito de Éfeso que deu relevo não ao princípio ou à natureza do ser, mas ao lógos.

O lógos era o responsável pela articulação das coisas, o tà ontá, e não da coisa (o uno), o tó on.  Aos nossos olhos, o lógos heraclíticotrata-se de um problema filológico antes de tudo porque não há verdadeiramente escólios de Heráclito de Éfeso, apenas aforismos como a metáfora de que jamais tomamos banho no mesmo rio. Entretanto, os efeitos dessa idéia reverberaram na filosofia. Assim, de um ponto de vista unilateral, o lógos tem muitos valores. Como valor ontológico, ele tem as noções de “razão”, “inteligência universal”, “norma universal do espírito”; de um ponto de vista cosmológico, ele mostra-se como a “lei cósmica”, “fórmula do devir”; de um ponto de vista lógico, ele é a “lei do pensamento”, “lei lógica”; de um ponto de vista gramatical, ele é o “discurso” ou a “palavra”. 

De um ponto de vista onde há a superação da unilateralidade através da conexão de todos esses aspectos, o ho logos é a doutrina que exprime as leis do universo, bem como as leis do universo expressas pela palavra da doutrina, ele é o “pousar: o puro fato do deixar-estendido-diante-em-seu-conjunto”.

No contexto de Neves:

“se há um lógos que pode ser maior que a ação, é possível que haja uma palavra que não corresponda à ação, uma palavra vazia, sem sentido, um dizer que não é nada. Já não importa simplesmente o dizer ou o fazer, mas importa o sentido desse dizer e desse fazer. Outro elemento interfere sobrepondo-se mesmo: é o noûs, a interioridade, a inteligência do que se diz e do que se faz: ‘não se deve agir nem falar como os que dormem’(Heráclito, frag. 73). Há uma profundidade que caracteriza o lógos (frag. 45). Evolui, assim, o esquema dizer/fazer que vem desde Homero”.

 

 Deste ponto em diante, o lógos passa a ser estudado a partir de sua função prática pelos sofistas e, ao mesmo tempo, começa a ser teorizado pelos filósofos. Assim, de uma vivência surge a teoria, mas ainda não há uma separação entre os fatos verdadeiramente linguísticos e os filosóficos.

As metáforas geométricas

 

Platão é o propagador da metáfora circular das ondas do discurso. Está metáfora sobre o logos está presente em vários diálogos, mas é no Crátilo e no Sofista que temos os marcos no estudo da linguagem no mundo ocidental do ponto de vista filosófico. O problema linguístico aparece em outros diálogos, como o Teeteto e Fédon, mas de forma indireta.

 

 

A figura do triângulo foi introduzida por Aristóteles em sua metafísica. Ele nos aponta para a existência de três componentes na semiose: De um ponto de vista linguístico, o estudo linguístico da referência não é o estudo das estratégias linguístico-discursivas de introdução, manutenção, alteração ou retirada da referência do texto/discurso, ou seja, a referenciação; tampouco o conceito de objeto-do-Discurso limita-se ao estudo dessas estratégias, mas pressupõe a ativação, manutenção e encerramento de um contato intersubjetivo, ou seja, um contexto, o qual é viabilizado pela sociocognição dos sujeitos do discurso.

Na base de todos esses conceitos tem-se uma metáfora geométrica. A imagem da significação como um processo circular. A metáfora do círculo será o “fio” condutor do recorte feito no campo bibliográfico da LT. Assim, o objetivo deste capítulo será o de desenlaçar a “trama” dessas categorias de análise reconstituindo-se, na medida do necessário, cada um dos paradigmas de pensamento de emergência desses termos.

Muitos são os pontos que se poderia puxar do campo bibliográfico da LT para descrever tais horizontes dentro e fora do Brasil. No Brasil, os pontos escolhidos foram dois livros e um ensaio: Linguística Textual: introdução (Koch e Fávero, 1988) e Introdução à linguística textual: trajetórias e grandes temas (Koch, 2009) e o ensaio Anáfora indireta: o barco textual e suas âncoras de Luiz Antônio Marcuschi presente no livro Referenciação e Discurso (Koch, Morato, Bentes, 2012).

Em consonância com o recorte brasileiro, selecionou-se quase que o conjunto da obra de Teun A. Van Dijk, em especial a sua Teoria do Contexto, pelo fato desta teoria ecoar textual e discursivamente nas duas introduções brasileiras. Os últimos três livros publicados por Van Dijk são sobre a sua Teoria do Contexto, Discourse and Context: a sociocognitive approach (2008), Society and Discourse: how social contexts influence text and talk (2009) e Discourse and knowledge: a sociocognitive approach (2014). Partindo do conceito de sociocognição, o autor defende a ideia de que a construção do objeto-do-discurso, ou seja, a construção intersubjetiva do contexto é um “movimento em círculos concêntricos”.

 

Para se estabelecer uma interpretação desta metáfora, buscar-se-á responder neste capítulo as perguntas seguintes: o que é o estudo da Referência? O que é o estudo da Referenciação? E o que é o estudo do Objeto-do-discurso? E quais são, respectivamente, as suas categorias linguísticas de análise? Se bem sucedido, a leitura deste capítulo permitirá ao leitor a enação dos contextos desses três conceitos, ou seja, a delimitação de sua face e de suas interfaces: a interface gramatico-textual (a referência), a face textual (a referenciação) e a interface textual-discursivo (objeto-do-discurso).

Da gramática da sentença à gramática do texto: os conceitos de texto e discurso

 

Em sua introdução de 1988, Koch e Fávero afirmam que a LT é um novo ramo da Linguística. Sua emergência ocorrera ainda na década de sessenta, em especial na Alemanha, mas também em outros países da Europa tais como Inglaterra e França. Para este novo ramo, a unidade máxima de análise da Linguística era o texto e não mais a sentença. Os motivos dessa mudança de objeto de análise da linguística eram alguns problemas de sintaxe.

Alguns desses problemas eram as relações entre a referência e a seleção dos artigos, a correferência  e a ordem das palavras no enunciado, a identificação do tema/rema e a entoação, a relação entre sentenças não ligadas por conjunções e a concordância dos tempos verbais. Nenhum desses problemas encontrou uma explicação adequada dentro da sentença. As teorias ou gramáticas do texto reproduziram, mutatus mutandis, a mesma dicotomia já existente nas teorias gramaticais gerativista (formalista) e funcionalista (conteudistas) já existentes.

De um lado, funcionalistas partiam de propriedades do enunciado para descrever o texto. Esse grupo era composto por pessoas como M. A. K. Halliday, R. Hasan, H. Weinrich, O. Ducrot, H. Isenberg e outros. De outro lado, um grupo composto por E. Lang, W. Dressler, T. A. van Dijk, J. S. Petöfi buscavam construir gramáticas do texto a partir do quadro da gramática gerativa, ou seja, o objetivo desses linguistas do texto era a depreensão de regras macroestruturais subjacentes aos diversos tipos de textos e não de propriedades do enunciado.

Foram necessários muitos anos para que a LT conseguisse tratar do problema do contexto devido à enorme complexidade do problema texto/contexto. Entretanto, segundo as autoras, pode-se depreender alguns pontos de acordo e desacordo entre esses autores com relação ao que seria uma Gramática do Texto até 1988. 

Um ponto de acordo é o fato deles acreditarem na existência de uma descontinuidade entre texto e enunciado. Um ponto de desacordo é com relação à ordem dessa descontinuidade, ela era de ordem qualitativa ou quantitativa? Outro ponto em comum era a crença de que o texto era muito mais do que uma simples sequência de enunciados. O processo de compreensão e produção de um texto dependia de uma competência textual. Uma divergência entre eles era com relação à origem dessa competência: ela seria de ordem natural ou cultural?

De todo modo, o paradigma de pensamento da Linguística Geral serviu para estabelecer os contornos do debate. Dois níveis para o estudo do Texto/Discurso (que na época eram parasinônimos) foram estabelecidos, retomando, novamente, a diferença aristotélica entre forma profunda e forma de superfície, conforme apresentada por Noam Chomsky em Linguística Cartesiana. Este livro é um marco-teórico interessante do ponto de vista filosófico para o debate na época. Assim, os dois níveis de análise do texto eram o macro-nível e o micro-nível, a coerência e coesão. A coerência era a responsável pela adequação do texto ao contexto e a coesão eram os recursos linguísticos utilizados para a tessitura do texto.

Assim, abstraindo-se a direção do estudo de cada um desses autores (do texto para o enunciado ou do enunciado para o texto), os primeiros gramáticos do texto reconheciam que qualquer falante competente de uma língua tinha a capacidade de distinguir um aglomerado de frases de um texto coeso e coerente e propuseram-se como tarefas as perguntas seguintes:

a)       Quais os princípios de constituição da coerência do texto?

b)       Quais eram os critérios de delimitação dos textos? Pressupondo-se que todo e qualquer texto era, necessariamente, um discurso com sentido completo.

c)       Estabelecer uma taxonomia textual.

Com relação à primeira pergunta, os princípios constitutivos da coerência, o problema era o limite e a natureza da informação não linguística necessária para a compreensão e a produção de um texto. Porque, em função dos problemas vivenciados com a gramática gerativa, já se sabia que o texto era o resultado de uma operação de integração de informações muito mais complexa do que a soma dos significados superficiais do enunciado. O texto foi então associado a um contexto e essa associação causou a emergência de outro problema: qual era o limite entre o texto e o contexto?[3]

O contexto foi inicialmente associado às condições de produção do texto. Houve, claramente, a inclusão do nível Pragmático no escopo da gramática. Esta inclusão ocorreu devido à influência das teorias dos Atos de Fala, das Lógicas das ações, da Teoria lógico-matemática dos modelos, bem como da Sprachspiele de Wittgenstein e da Lógica das ações humanas de Von Wright.  A explicação final da Linguística era a competência comunicativa. Os ecos dessa virada Pragmática na metodologia e definição do objeto da Linguística foram os seguintes.

A seleção do corpus deveria ser de base empírica. A tarefa cognitiva deveria ser a comunicação real, efetuada por pessoas reais, em situações reais de comunicação. Houve uma redefinição do peso de cada um dos níveis de análise. Nesse novo paradigma, a Sintaxe era responsável pelo arranjo temporal dos elementos linguísticos. A Semântica era responsável pela seleção no paradigma por contraste desses elementos.  O componente pragmático relacionava as informações linguísticas com os conhecimentos prévios e os elementos paraverbais (a entoação, por exemplo). 

A delineação do contexto com o “conhecimento prévio” incluiu no estudo do contexto a questão ideológica. Esta questão relaciona-se diretamente com a referencia, o seu valor e o seu sentido. Assim, para algumas linhas da LT, a coerência, ou seja, o uso da palavra adequada à situação não era determinada apenas pela competência comunicativa, mas era o resultado de um processo decisório do falante a partir do contexto.  Para outras, a coerência era determinada somente pela competência comunicativa dos sujeitos do discurso, deixando-os sem liberdade autoral, devido, justamente, à ideologia.

Segundo as autoras, o que caracterizaria uma Gramática ou Teoria do texto é o escopo e o tipo de objeto que ela se propôs a descrever. De maneira geral, a LT trabalha com uma definição mais ou menos explícita de texto. As demarcações mais evidentes do texto são aquelas observáveis na interação entre os sujeitos do discurso.  Alguns contextos como um sermão, um tratado, uma dissertação têm as situações de comunicação mais estruturadas, e, consequentemente, textos devidamente delimitados.  Inicialmente, o objeto das gramáticas do texto era ultrapassar a barreira da sentença e os linguistas do texto passaram a trabalhar com pares de sentença utilizando-se da metodologia da linguística estrutural.

A metodologia de análise frasal da linguística estrutural mostrou-se pouco adequada à análise de textos, porque o texto é entendido como um discurso com sentido completo. A sua segmentação só seria adequada se a condição de isolamento das sequências textuais, as quais são interligadas por relações de ordem semântica, sintática e fonológica, fossem concomitantemente analisadas. Tal condição jamais foi alcançada. Mesmo assim, o texto continuava a ser o signo linguístico primário e global cujas partes constituem um sistema. Alguns elementos estruturadores do texto pertencem à frase, outros, como os conectores, as anáforas e as catáforas pertenceriam além da fronteira da frase. Todos esses elementos são constitutivos do texto.  A descrição desses morfemas e sintagmas à luz de uma teoria do texto dependeria do escopo descritivo e dos tipos de requisitos de adequação, explicitude e formalidade dessa teoria.

As autoras elencaram algumas dezenas de definições de escopo e requisitos diferentes de gramáticas e teorias do texto. Assim, o termo gramática e teoria ora são usados com sentidos diferentes, ora como parasinônimos. De forma geral, porém,  a convicção de que se deveria ultrapassar o nível da sentença era a base de todas essas gramáticas e teorias. Contudo, criou-se uma espécie de confusão entre discurso e texto.

A posição das autoras com relação a este problema é bastante clara. Primeiramente, elas reconhecem que no alemão ou holandês o termo “texto” é parasinônimo de “discurso”, enquanto que no inglês o termo “texto” é usado para referir-se à modalidade escrita do texto, e o termo discurso para fazer referência a sua modalidade oral. Nas línguas românicas, a distinção entre texto e discurso ocorre de forma semelhante ao inglês. 

Há duas grandes linhas interpretativas com relação à diferença entre discurso e texto. Uma entende que há uma entidade abstrata subjacente a uma manifestação concreta. Outra que entende o texto como uma entidade completamente abstrata.  Um adepto da primeira linha é van Dijk. Em Textwissenschaft (1978), ele entende que o Discurso é a unidade passível de observação pela enunciação e o Texto é a unidade teoricamente reconstruída, subjacente ao Discurso.

Influenciado pela Filosofia Analítica da Escola de Oxford, a qual por sua vez ecoou a voz de Peirce através da sua oposição sentença-tipo (type) x instância de uso (token), Van Dijk defende a posição de que o Discurso-tipo pode ser determinado por uma gramática do texto ou outra teoria do discurso apenas através das estruturas empiricamente observadas na instância de uso. A gramática do texto deveria ser realmente uma gramática, e descrever as regras de geração das macroestruturas textuais. A análise do discurso, por sua vez, teria a responsabilidade de analisar as dimensões pragmáticas, argumentativas, estilísticas, retóricas, narrativo, semiótico, etc. do Discurso-ocorrência.

Um representante da outra linha é Hjelmslev, para quem todo e qualquer texto equivale a um processo discursivo, ou seja, toda e qualquer manifestação da língua. Todo ato de linguagem pe um texto e a língua é, ela própria um texto, “um texto ilimitado. Não se trata assim de uma unidade linguística, mas de mera forma de existência da língua”. Assim, “sobre o conceito de formulado por Hjelmslev não é possível fundar-se uma linguística textual” porque o seu objetivo era a descoberta do sistema a fim de se formular uma teoria da       “langue”.

As conclusões finais das autoras a respeito do assunto é o representado na figura abaixo. Tal proposta resolve a dissonância entre os diferentes sentidos dos termos “texto” e “discurso” através da introdução de um terceiro elemento. Há o texto em sentido lato que é responsável por toda e qualquer manifestação textual do ser humano em qualquer mídia. O discurso é a atividade comunicativa realizada pelos sujeitos do discurso, numa situação de comunicação dada (um contexto definido), englobando os enunciados produzidos e o evento de sua enunciação. O texto em sentido strictu sensu é uma unidade de sentido caracterizada por um conjunto de relações responsáveis pela tessitura do texto cujos dois fatores são a coesão e a coerência.

as gramáticas do texto de halliday e de van dijk

 

 

                Tendo-se por base que no início da LT os fatores de distinção de um texto strictu sensu em relação a um aglomerado de enunciados eram a coesão e a coerência, as primeiras versões da LT assumiram a Coesão como o micro-nível e a coerência como o macro-nível. Fugiria ao escopo deste trabalho retomar a questão o debate filosófico e gramatical a respeito da noção de função na linguagem. O debate sobre esse conceito nos contextos filosófico e gramatical da Antiguidade foi abordado em algumas obras de Maria Helena de Moura Neves, especificamente A vertente grega da gramática tradicional e A gramática funcional. O fato é a existência desde a antiguidade de uma tensão entre os dois direcionamentos básicos do estudo da linguagem, isso resultou em diferentes perspectivas sobre a noção de função pelos linguistas do texto e, consequentemente, diferentes abordagens com relação ao estudo da Referência.

                Citando um trabalho de 1970 de M. A. K. Halliday, Language structure and language function, as autoras declaram a existência de três macros funções na linguagem: a ideacional, a interpessoal e a textual. A ideacional corresponde à função cognitiva ou referencial da linguagem. A Interpessoal é a posição do locutor em relação ao ouvinte no processo da enunciação, ao modo do seu discurso: se se trata de uma pergunta, uma ordem, etc. A textual é a estruturação a partir dos recursos da língua de um texto adequado ao contexto. A adequação do texto ao contexto depende exclusivamente desses elementos presentes na língua.

                Esses elementos linguísticos responsáveis pela tessitura textual são a temática (tópico x comentário) e a informacional (tema x rema), esta última de natureza claramente discursiva. Nessa visão, o texto não é a simples soma dos significados, mas um todo completo de sentido. A causa desse sentido não é a sua expressão, mas o seu significado. Assim, o texto tem como base o significado (o nível semântico). Em seguida, o conteúdo é codificado em parte no léxico e em parte na gramática. Por fim, a forma é realizada através de um sistema de expressão fonológico ou de escrita.  Convém observar a circularidade da definição do texto em relação ao contexto. Assim, “a realização verbal entendida como uma organização de sentido, que tem o valor de uma mensagem completa e válida num contexto dado”(Halliday e Hasan, 1973, Koch e Fávero 38). Ou seja, “dado” o contexto, a coesão é obtida parcialmente através da gramática e parcialmente através do léxico.  “Os principais fatores responsáveis pela coesão textual: a referência, a substituição, a elipse, a conjunção (conexão) e o a coesão lexical.” (Koch e Fávero, 38).

                “Os elementos da referência são os itens da língua, que em vez de serem interpretados semanticamente pelo seu sentido próprio, relaciona-se a outros elementos necessários.”(Koch e Fávero, p. 38). Há dois tipos referência. A exófora, ou seja, aquela presente na situação social e a endófora, ou seja, aquela presente na superfície textual. A endófora pode ser de duas formas. Quando a referência é retomada de forma precedente na superfície textual, ela é anafórica. Quando a referencia é localizável na sequência seguinte do texto, ela é catafórica. A referencia textual pode ser pessoal, sendo feita através da pessoa do discurso, isso é, dos pronomes pessoais e possessivos. Ela também pode ser demonstrativa e atualizar uma escala de proximidade através do uso de pronomes demonstrativos e advérbios indicativos de lugar. Por fim, ela pode ser feita por via indireta, através de identidades ou semelhanças. Esta relação de identificação é realizada através de uma referencia endófora, sendo que esta permite uma interpretação de um item em relação a outro.  A relação estabelecida pode ser entre itens lexicais, orações ou até mesmo um enunciado inteiro. O estabelecimento inadequado de uma anáfora ou catáfora tem como possível consequência ambiguidade ou inteligibilidade do texto. Convém observar os demais fatores de coesão textual segundo Halliday porque eles revelam muito sobre a sua concepção da textualidade como um fio linear. 

                A substituição era um fator de coesão porque através dela um item era colocado no lugar de outro. A forma comutável podia ser um sintagma nominal, um pronome, um numeral, indefinidos, nomes genéricos e palavras como respectivamente, ambos, etc. A elipse, por sua vez, consiste na omissão de um item lexical recuperável pelo contexto. A diferença entre a referência, a substituição e a elipse é que a substituição é mais gramatical, enquanto que a referência é mais semântica e no caso da elipse a informação fica subentendida. A conjunção tem uma natureza diferente com relação aos outros três fatores porque ela não associa diretamente dois elementos. As relações estabelecidas pelas conjunções entre os elementos (que podem ser orações, parágrafos, etc.) são de natureza indireta e mais dependente do contexto, ou seja, da função e do uso da linguagem. Por fim, a coesão lexical é obtida através da repetição de itens com o mesmo referente, ou seja, pertençam ao mesmo campo lexical. Se se colocar uma palavra que é o hiperônimo dentro do campo lexical, a referência pode ficar vaga. Nesse sentido, o uso do hipônimo tem um efeito coesivo maior. O nome precedido de um determinante definido orienta a busca pela referência de forma anafórica, por um determinante indefinido de forma anafórica.

               

 

 

[1] Para uma apresentação detalhada e recheada de gráficos da teoria da dissonância cognitiva, remetemos o leitor à obra original em inglês. O registro linguístico desta obra é simples e muito bem cuidado, promovendo uma leitura fluida até mesmo para não-iniciados na área.

[2] Para uma apresentação das convergências e divergências entre as  teorias retóricas no ocidente, bem como uma apresentação global  e multimilenar da disciplina, o leitor pode servir-se do capítulo de (Mosca, 2004) presente na excelente obra intitulada Retóricas de ontem e de hoje.

[3] Um exemplo desta polêmica, a qual na verdade é de ordem mais filosófica do que linguística, é a contra-argumentação de Rodolfo Ilari em relação à definição de anáfora por Anna Paduceva publicada em um livro de 1970. Para ela, “the relation between two names of a given text that have identical denotata may be called anaphoric relation”.  Segundo Ilari, esta definição é contraintuitiva porque nesta caso “somos levados sem escapatória a conclusão de que toda anáfora expressa correferência, mas essa conclusão é indesejável(...)”e “contra-intuitivo”. (Ilari, Rodolfo, p. 103-4, Koch, Morato, Bentes (orgas)

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Breno W.
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Doutorado: Letras (Universidade de São Paulo)
Bacharel, mestre e doutorando em letras pela usp na área de linguística textual e análise do discurso, especialista no conceito de contexto.
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